terça-feira, 20 de abril de 2010

Eu ‘gosti’

Por sugestão de uma leitora, nesta semana, voltaremos a tratar da aquisição da linguagem. O tema, recentemente, foi explorado por um comercial de TV de um famoso achocolatado em pó. Nele, um garotinho, após se negar, insistentemente, a comer legumes, experimenta o produto e diz à mãe: “Eu gosti”.

A impressão inicial, ainda compartilhada por alguns pais e professores, a respeito dessa construção, é de que a criança que a produziu possui algum problema, o qual deve ser rapidamente corrigido, para que não haja prejuízos no futuro.

Contudo, se analisarmos melhor a produção, veremos que essa impressão é equivocada e ignora a capacidade de pensar da criança, alguém que aprende por meio de experiências que, embasadas em lógica, podem ou não dar certo.

Durante os primeiros anos de vida, o ser humano tem três necessidades básicas: comer, beber e dormir. Esses três verbos, naturalmente, estão muito presentes no vocabulário dos pais e parentes próximos.

Quando observamos a conjugação desses verbos e de grande parte de outros verbos utilizados no cotidiano da criança, como ‘sair’, ‘ver’, ‘assistir’ e ‘cair’, na primeira pessoa do singular do pretérito perfeito, notamos a regularidade de terminação em ‘i’ (comi, bebi, dormi, saí, vi, assisti, caí). Dessa regularidade, a criança extrai a regra de que a primeira pessoa no passado termina em ‘i’ e a ‘fórmula’ é aplicada para outros verbos de seu vocabulário, os quais ela nunca ouviu em primeira pessoa e no passado. Constrói, então, orações do tipo: “Eu gosti”, “Eu fazi”, “Eu di”. Orações que provam que o indivíduo em formação não é “um espelho” ou “uma esponja”, como se afirma por aí. Muito mais do que isso, é sinal de raciocino e criação. É sinal de que tudo vai bem.

segunda-feira, 12 de abril de 2010

“Excelênte” negócio

A inspiração para o texto desta semana vem de um comercial daqueles famosos canais de vendas da TV aberta. Lia-se em grandes letras, na parte inferior da tela: “Excelênte” negócio, com acento circunflexo no terceiro ‘e’ de excelente. O problema ortográfico é muito comum e observado com grande frequência em textos escritos.

A falha está na concepção de que, se na palavra excelência há acento, em suas derivadas também haverá acento. O mesmo ocorre, por exemplo, com palavras como frequência e frequente, inteligência e inteligente, juiz e juízes, hífen e hifens. No português, as palavras são acentuadas em relação a sua terminação e não em relação a seu significado. Não é porque uma palavra possui acento que todas as suas derivadas também possuirão acento.

Vejamos os casos acima: Excelente é uma paroxítona (palavra que possui a penúltima sílaba tônica) terminada em ‘e’, por isso não leva acento. Lembre-se, se as oxítonas (palavras que possuem a última sílaba tônica) terminadas em ‘e’ são acentuadas, as paroxítonas não serão. Excelência, apesar de possuir a mesma raiz e também ser paroxítona, é terminada em ditongo, por isso é acentuada. Terminação diferente, regra diferente. O mesmo ocorre com inteligência e inteligente. Juiz é uma oxítona terminada em ‘z’, por isso não leva acento, já juízes é paroxítona e, além disso, possui a sílaba “forte” é formada por um hiato em ‘i’. A regra diz que os hiatos em ‘i’ e ‘u’ devem ser acentuados. Isso explica porque juízes leva acento e juiz não.

Com as palavras hífen e hifens, até mesmo o corretor ortográfico do Word se engana, veja você mesmo. A palavra no singular é terminada em ‘en’ e a palavra no plural termina em ‘ens’. As duas são paroxítonas, mas a regra prescreve que somente as paroxítonas terminadas em ‘en’ serão acentuadas. Vale a dica: para saber se uma palavra é acentuada ou não, é necessário observar terminação e sílaba tônica, além de conhecer as regras gerais de acentuação. É isso.

sábado, 3 de abril de 2010

Terçol no olho

Esta semana, ao apresentar um participante do programa de perguntas e respostas do SBT “1 Contra 100”, o apresentador Roberto Justus disse o seguinte: “O personagem João Plenário retorna novamente ao programa”. Note que não há na oração nenhum problema relacionado aos aspectos morfológicos ou sintáticos da língua. Não há desvios de concordância e também não há problemas de regência, já que o verbo “retornar” pode ser usado com a preposição ‘a’ (retornar a algum lugar).

O problema evidenciado é de ordem semântica, ou seja, tem relação com o sentido dos termos selecionados. Note que Justus utiliza “retornar”, que tem a significação de tornar novamente, já que o prefixo latino re- adiciona ao verbo a ideia de repetição, como em reeditar (editar novamente), reafirmar (afirmar novamente), recomeçar (começar novamente). Até aí, nenhum problema. Ocorre, porém, que, além do verbo retornar, há o emprego do advérbio “novamente”, que também significa “outra vez” ou “de novo”. Houve uma redundância, chamada de pleonasmo. Dizer que alguém “retorna novamente” é o mesmo que dizer que “O homem subiu para cima” ou que “O cachorro comeu a comida”. O problema seria facilmente resolvido com o apagamento do advérbio ou com a troca do verbo: “O personagem João Plenário vem novamente ao nosso programa” ou “O personagem João Plenário retorna ao nosso programa”.

O caso lembra a piada de um amigo:

Um sujeito muito simples volta do médico e o compadre pergunta: “O que é isso no olho, Zé?” Zé responde: “Estou com ‘terçol no olho’, João”. João, sabendo que a doença aparece somente nos olhos, retruca: “’Terçol no olho’ é pleonasmo”. Outro amigo se aproxima e faz a mesma pergunta: O que é isso aí, Zé? E o Zé conclui sabiamente: “Já não sei mais! O médico disse que é terçol, mas o João falou que é pleonasmo!”.